segunda-feira, 15 de março de 2010

Me arranho


Querido L.

Sempre te escrevo,por isso você nunca soube exatamente o que eu sentia. Não vá achando que tenho talento, não sou poeta, poetas se rasgam, eu apenas me arranho.
Faz um tempo que uso meus pobres rascunhos e rabiscos como um jeito de te olhar nos olhos e sorrir, como sempre quis, como nunca fiz direito.Você não acha?
Mas é que transformar tudo em declarações explícitas seria admitir que sou dependente de tudo.Seria imbecilidade da minha parte te dar o melhor de mim assim,de bandeija, mão beijada e coração rasgado.
E ao contrário, não sou explícita, você sabe!É inútil admitir que ficava o dia todo ao lado de um maldito telefone,nunca farei isso. Fiquei,e às vezes ainda fico.E daí? Ficava mais na época que nosso amor parecia salada de frutas, cheio de cores e sabores.Hoje,virou agua morna, sem cheiro, sem cor, sem sabor. Mas a vontade de dar goles nunca passa de vez ,estou sempre acordando de ressaca, há vezes em que a sede é mais amena,aí suporto 2,3 dias no máximo!
E meu coração, que um dia já foi jardim florido,regado e podado, agora que você se foi, está cheio de erva daninha. Na época em que vivíamos com esperança montada, poemas decorados e notas musicais na ponta da língua, na época em que brigávamos só para fazermos as pazes, em que vomitávamos nossos defeitos só para dizer logo em seguida que nos amávamos apesar deles. Pois é, errei tanto naquela época achando que minutos vazios eram dias vazios, na verdade meus dias eram completos, com toda aquela morbidez,era o jeito mais divertido de completar meus dias e o que mais anseio.
Querido L., não pense que estou revirando gavetas velhas nessa altura da nossa separação, mas hoje me deu uma vontade imensa de tirar a poeira dos livros, ajeitar as almofadas da sala e trocar o lençol.Se você deixasse, eu seria capaz de varrer a casa toda, polir os móveis, encerar o piso e organizar sua coleção de vinis por ordem alfabética.É tarde, não é? Penso que não dá mais tempo de entrar, as traças e os cupins chegaram assim que você partiu, seus livros já eram, baby! Assim como nossa chance de tomar um vinho, fumar um paiol e escutar Beatles naquela vitrola de madeira que também foi dado aos cupins de presente. Fomos bons com as traças né!
Querido L., se seu objetivo era deixar marcas você pode se sentir realizado, você fez um trabalho muito bem feito, se você queria me deixar sem rumo, você pode se sentir melhor ainda, porque naquela época em que não sabia onde ir, eu apenas te seguia, qualquer lugar estava bom. Mas depois que você partiu, aí sim tive que aprender a andar sozinha, as coisas caminharam, até hoje não sei se foi sempre para frente, mas hoje sei exatamente por onde ando, as pedras que piso e as portas que entro, isso não me tornou melhor, isso me tornou apenas mais cautelosa e sem pressa de jardins podados, regados e floridos. "um muro na alma", não é
assim que você dizia?Meu muro é um pouco mais baixo que o seu, fico feliz, não queria ser você,marcha fúnebre. Confesso, meu rock n' roll está ficando cada vez mais bossa nova, mas ainda me restam alguma percussão e acordes de guitarra.Não é nada demais, é só o que você não me levou.
Querido L., me escreva! Sempre te escrevo.


Da sua M.


[Camila Fonseca]